27 de junho de 2012

O futuro do português



Eisvaissai logo pa eischega cedo.

A língua que a gente fala pode ser assim no futuro. Não entendeu? De acordo com a gramática atual, seria: “Eles vão sair logo para chegar cedo”. Lendo em voz alta, nem é tão distante do que se ouve por aí, pois a fala do presente traz pistas da gramática do futuro. Mesmo assim, brasileiros de hoje dificilmente se entenderiam com os do ano 2500 – ou com portugueses de 1500.

Para qualquer língua, 5 séculos é muito tempo: só para citar um exemplo, usar o verbo “ter” com sentido de “existir”, fundamental em qualquer conversa, é coisa de 100 anos pra cá. Pense na dificuldade que temos com a Carta do Descobrimento, de Pero Vaz de Caminha. Para decifrar “da marinhagem e das singraduras do caminho”, é preciso um dicionário, como no estudo de um novo idioma. Essas mudanças ocorrem porque línguas são metamorfoses ambulantes, moldadas pelas necessidades dos usuários – não pelas regras gramaticais.

É como se o português do Brasil fosse uma sopa, eternamente no fogo, que recebe ingredientes e temperos e ao longo do tempo vai tendo o seu sabor alterado. Palavras nascem, crescem ou se encurtam, se combinam, mudam de sentido e de pronúncia e, um dia, morrem. Que gosto isso vai ter a gente não garante, mas, nas próximas páginas, damos a receita do prato. Bom apetite.

Neologismo delivery

O português brasileiro, diferentemente do lusitano, é extremamente aberto a novas experiências. Importar e adaptar palavras é uma tendência antiga e continua sendo força poderosa para definir Vo futuro da nossa língua. “Vocês são muito abertos aos estrangeirismos e incorporam com extrema naturalidade vários termos”, diz o português Augusto Soares da Silva, lingüista da Universidade Católica Portuguesa. “Há uma tendência inata para isso, diferente da do português de Portugal, que transforma o ‘mouse’ em ‘rato’.” Augusto fez uma pesquisa comparando jornais de Portugal e do Brasil dos últimos 50 anos e percebeu que ficamos com diversos termos do inglês tais como eram na origem. Foi assim que nasceram o “xis-tudo”(de cheese, “queijo”), os serviços “delivery”, a “customização” de roupas e a “equalização” do som. “Se um dia alguém resolver expurgar as palavras de fora, 70% do que temos vai embora”, prevê o filólogo Mário Viaro, da USP.

Os presentes gringos costumavam ser mais requisitados pelo universo da cultura (show, blockbuster, best seller), da gastronomia (suflê, purê, bufê) e da moda (aliás, “fashion”), mas hoje são principalmente associados ao vocabulário corporativo (“pessoal do marketing”, “atingir o target”, “briefing”) e informal (“let’s go”, “whatever”, “kisses”, “yessss!”).

Dá para perceber que boa parte do vocabulário importado vem do inglês, não por acaso a língua da principal potência econômica, militar e cultural do planeta. Sempre foi assim: o que temos de hospitaleiros temos de puxa-sacos, copiando o idioma de quem está por cima.

Até a 2ª Guerra Mundial, o monopólio da sofisticação pertencia ao francês, de chauffeur, garçon, lingerie, cabaret, ballet, filet e mulher mignon. Com a ascensão do poder americano, o inglês foi tomando espaço, até virar a 2ª língua de todo mundo, daquele engravatado com MBA ao roqueiro underground.

E a história da língua ensina que roubaremos sem piedade palavras de outros países que se tornarem importantes. Como o mandarim dos chineses é uma língua exótica demais para nossos ouvidos, a previsão é de que surjam regalos do espanhol, já que o Brasil aumentou o intercâmbio com os seus vizinhos e tudo indica que os hispânicos devem ser a maioria dos EUA até o final do século. Um exemplo a favor da hipótese: blecaute (blackout) já virou apagão (apagón).

Mas não são só os produtos importados que se valorizam. A história recente ensina que, para não se perderem na globalização, alguns grupos passam a valorizar suas diferenças, e uma delas, claro, é a língua. O R caipira, que chegou a ter sua extinção anunciada no início do século 20, continua firme e forte, assim como o “tu” gaúcho e o chiado carioca não cederam a nenhuma padronização.

A professora de teoria lingüística Marilza de Oliveira, da USP, cita como precedentes os antigos dialetos de Milão e Turim, na Itália, que hoje são aprendidos pelos italianos. “Poderemos seguir pelo mesmo caminho, dando prestígio aos dialetos regionais do Brasil.”

Força do hábito

Independentemente de qualquer reforma oficial, o português brasileiro está sempre sendo modificado no dia-a-dia por seus falantes. O problema é que o idioma evolui mais rápido na língua do que no papel. Os gramáticos e os dicionários, que prezam pelo bom uso da língua, demoram mais para consagrar mudanças.

Se seguirmos a gramática da Academia Brasileira de Conversas, não a de Letras, o capítulo sobre pronomes pessoais precisa ser reescrito. O “você” chega com tudo, aproveitando a conjugação do “ele” e substituindo o “tu” como 2ª pessoa do singular. O “nós” sai e deixa em seu lugar o “a gente”, e o “vós”, que há anos não sai de casa, é substituído por “vocês”. E sabe-se que o sujeito oculto anda cada vez mais exposto; aliás, a gente sabe.

Outros pronomes não ficam atrás. Nunca soube quando usar “este”? Tudo bem: no futuro, ele só deverá ser encontrado no dicionário. Como o inglês e o francês, que têm apenas demonstrativos de perto e longe, ficaremos com “esse” para o que está ao lado e “aquele” para o que está afastado.

Alguns tempos verbais também foram vítimas da seleção oral. Há alguns anos, o pretérito mais-que-perfeito (“eu amara”) virou comida de traça. Agora pode ser a vez de o futuro do presente (“eu amarei”) fazer parte do passado. Mas a língua é um daqueles sistemas em que nada se perde, tudo se transforma. O “eu amara” virou “eu tinha amado”, e o “eu amarei” se transformou em “eu vou amar”.

Nesses exemplos está um dos hobbies favoritos do nosso português: brasileiro que é brasileiro adora uma perífrase, ou seja, transformar uma palavra em duas. Muitos dos nossos verbos passaram por esse fenômeno. O “amarei” um dia já foi “amare habeo”, vindo de “amabo”.

Por que a perífrase acontece em alguns tempos verbais e não em outros ainda não está plenamente explicado, mas alguns estudos lingüísticos dão pistas. “O presente e alguns passados são mais resistentes às mudanças porque seriam ‘tempos mesmo’, ou seja, referências mais concretas para marcar datas”, explica Marilza de Oliveira, da USP. Assim, “eu amei”, “eu amava” e “eu amo” são imutáveis por serem mais precisos – em time que está ganhando, não se mexe. Nos outros, a gente tende a criar, encurtando, aumentando e mudando os verbos.

Alguns pesquisadores até arriscam que parte dos brasileiros parou dizer que “poderia entregar o livro nesse endereço” para garantir que “vai estar podendo”. A hipótese é que o “gerundismo” (o abuso de gerúndio, ou seja, verbos terminados em “ando”, “endo”, “indo”, “ondo”) é uma estrutura natural do português brasileiro. “Ela seria utilizada não só por manuais mal traduzidos mas por todos, em situações com algum grau de formalidade”, explica Marta Scherre, lingüista da Universidade de Brasília (UnB). E, para desespero dos puristas, essa estrutura pode resistir ao tempo, virar regra e talvez, um dia, ser falada com despreocupação por nossos tataranetos.

Esquerda, volver

A proliferação do “gerundismo” no Brasil espelha uma das forças mais determinantes do português do futuro: a flexão à esquerda. A língua das próximas gerações poderá não ter mais aqueles pedacinhos grudados no fim da palavra para indicar plural ou singular, masculino ou feminino, tempo e modo. Forças desconhecidas estão pouco a pouco atraindo esses fragmentos para a esquerda da frase.

Exemplo: se eu digo “verei”, você sabe que eu ainda não vi por causa do “ei”. Mas em “vou ver”, cada vez mais comum, a mesma informação é dada pelo “vou”, à esquerda da expressão.

“Estamos colocando a pessoa e o número no pronome, e o tempo e o modo no elemento anterior ao verbo”, explica Ataliba de Castilho, lingüista aposentado da Universidade de Campinas (Unicamp). “Essa é uma das grandes inovações já registradas em pesquisas e que tem tudo para se cristalizar na língua.” E sugere que os pronomes pessoais “ele” e “eles” podem ser reduzidos e colados aos verbos. “Ele” vira “ei”, “eles”, “eis”. Com o “sair”, no futuro, “eisvaisair”, como no exemplo que abre o texto.

Alguns paulistas já seguem a tendência quando comem o plural junto com aqueles “dois pastel”. Uma das explicações para esse falar, também típico de outras partes (Porto Alegre tem “dois time grande”), é que a forma gramaticalmente correta traz uma certa redundância: se o S já está ali no “dois”, pra que repetir? “Em vez de S no fim, colocaremos o S no começo, antes do radical da palavra, quase como um prefixo”, prevê Ataliba.

A onda esquerdista também está na hora de colocar pronomes. “Dê-me um cigarro!” cheira a mofo – aliás, Oswald de Andrade já reclamava em 1925, no poema Pronominais, que “o bom negro e o bom branco / Da Nação Brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”. Ataliba compara: “A língua é como uma bola que nunca mais parou de rolar. Alguém desviou o chute para a esquerda e, pronto, a influência aparece em vários lugares”.

Falando desse jeito, parece que o português caminha para algo bem mais simples, um punhado de monossílabos com poucas conjugações e flexões. Mas não é bem assim. Quem fala gosta de ser notado pelo que diz, não vai abdicar de caprichar nas palavras. E aí entra em cena a criatividade e a expressividade que, juntas, contribuem para manter o idioma complexo. “A única regra das línguas é a busca da expressividade, e nunca da simplificação”, afirma Ataliba. “Dizer que os idiomas mudam para ficarem rasos é esquecer que, no fundo, são mudanças extremamente complexas.”

Certo ou errado?

Em 46 a.C., o estadista Marco Túlio Cícero fez um discurso no Senado romano sobre a arte da oratória. A certa altura, inflamado, lamentou que o povão não sabia mais o que era latim; falavam tudo errado, era uma calamidade.

Na verdade, poucos romanos se expressavam como Cícero gostaria – assim como poucas discussões em botecos brasileiros passariam intactas pelo corretor de texto. Da mesma maneira que o latim vulgar repaginou o latim clássico e se misturou a dialetos para dar origem a outras línguas, é o “português vulgar” que puxa as mudanças. Quando ninguém está prestando atenção em como fala, atento ao que está dizendo e não como está dizendo, é que as mudanças ocorrem.

“As pesquisas sociolingüísticas, feitas desde a década de 1960, têm mostrado que as formas inovadoras surgem no seio da classe média baixa”, explica o sociolingüista Marcos Bagno, autor de A Norma Oculta – Língua e Poder na Sociedade Brasileira. “Aos poucos, essas formas inovadoras vão ganhando prestígio e sendo adotadas pelas classes média e alta urbanas, até atingirem textos escritos.” Foi o que aconteceu, por exemplo, com o particípio de alguns verbos. A forma antiga – e certa – um dia já foi conhoçudo, e não conhecido; perdudo, e não perdido. Mas, de tanto o povo falar, o “ido” pegou.

Mesmo o mais culto do brasileiros de vez em quando solta um “deixe ele entrar” e não “deixe-o entrar”, ou “o livro que eu falei” e não “de que falei” (ver quadro O Presente do Português). Assim, meio sem querer, frases como essas podem vir a ser a regra da gramática do futuro. “É divertido ver a campanha dos gramáticos de antigamente contra as formas que eram consideradas erradas na época deles e que hoje são usadas inclusive em textos literários”, diz Bagno. “No futuro, nossos bisnetos vão se admirar com os ‘erros’ criticados em 2008.”

O “erro” é entre aspas mesmo: para os lingüistas, só há erro quando as pessoas não se entendem, não porque uma regra diz que aquilo é errado.

Para evitar o descompasso entre língua falada e escrita, órgãos como o Instituto Houaiss, que faz o conhecido dicionário, vão aderindo aos poucos às inovações, colocando novos significados e usos em seus verbetes. Daqui a algumas centenas de anos, talvez ele também registre a frase “Eles vão sair logo para chegar cedo!” como a forma arcaica de “Eisvaissai logo pa eischega cedo!”

Fonte: Superinteressante

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