18 de junho de 2010

Devemos ter medo dos verbos abundantes?

Com frequência, em minhas participações ao vivo na CBN-Curitiba comentando questões de português, me chegam perguntas envolvendo os verbos abundantes, isto é, aqueles verbos que possuem duas formas no particípio, como acender (acendido/aceso), matar (matado/morto), limpar (limpado/limpo). Os ouvintes costumam me perguntar qual a forma correta: ganho ou ganhado, gasto ou gastado, pago ou pagado, expresso ou exprimido? Como as duas formas são da língua, fiquei me perguntando donde vem esta dúvida, esta insegurança. Por que as pessoas têm uma sensação de que há algo inadequado nessa duplicidade de formas?

A resposta me veio um dia desses ao encontrar um velho amigo na rua. Ele elogiou a CBN-Curitiba por abrir um espaço para se discutir questões da nossa língua e me disse, enfaticamente, que esperava que eu conseguisse “acabar com o famigerado pego” (como em "tinha pego" ou "foi pego"). E acrescentou: “Minha professora de português condenava sempre este uso e tinha uma reação na ponta da língua quando alguém usava essa expressão: pego, não; pegado – pego é o macho da pega, que é uma ave da família dos corvídeos”.

Aí está a origem da confusão. Imagino que muitos de nós ouviram esta frase ou outra semelhante. E, de tanto ouvir, introjetaram a sensação de que os particípios irregulares são inadequados (ou, se preferirem, “errados”).

Infelizmente, o ensino de português tem se pautado há séculos por uma agenda negativa: não se promove a língua viva, mas se gasta um excesso de energia na condenação categórica de fenômenos lingüísticos – como se a língua fosse simples ou imóvel. O único efeito dessas condenações é a insegurança que elas geram nos falantes quando precisam empregar a chamada norma culta.

Em geral, os juízos condenatórios são desmentidos pela realidade sempre dinâmica da língua. Uma simples consulta aos bons instrumentos descritivos é suficiente para elucidar os equívocos dessas condenações infundadas.
Costumo dizer aos meus colegas professores de português (embora raramente seja ouvido porque a tradição destrói o bom senso): antes de condenar ou antes de repetir chavões sobre algum fenômeno lingüístico, consulte, entre outros instrumentos, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Editora Objetiva) ou o Guia de uso do português (escrito por Maria Helena de Moura Neves e publicado pela Editora da UNESP). Em geral, estes instrumentos – que se fundamentam em pesquisa ampla dos fatos da língua – desautorizam as condenações tradicionais.

Meu amigo e sua professora certamente ficariam surpresos se, antes de condenar com tanta veemência o uso de pego, consultassem, por exemplo, o Dicionário Aurélio (atualmente publicado pela Editora Positivo). Nele se lê que pego é o particípio irregular de pegar. E para abonar esta afirmação, transcreve-se um texto de ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade: “Que faz um passarinho fora da gaiola? Às vezes não sabe mais voar, e é pego de novo”.
  
Se fossem ao Houaiss, encontrariam a informação de que o verbo pegar apresenta duplo particípio: pegado e pego. E, mais adiante, leriam a seguinte observação: “Embora se preconize 'pegado' como particípio de 'pegar', convém admitir que 'pego'" tem sido reiteradamente documentado como particípio irregular de 'pegar' no uso culto do Brasil e de Portugal”.

Se formos ao Guia de uso, encontramos as seguintes informações (seguidas de exemplos retirados de sua base empírica, que é constituída de 70 milhões de registros do português escrito no Brasil desde 1950): “1. A forma de particípio 'pegado' é mais usada com os auxiliares 'ter' e 'haver', mas também se usa com 'ser'... 2. A forma 'pego', que sofre restrições em algumas obras normativas, é usada com os diversos auxiliares...”

Ao ler o Houaiss e o Guia, ficamos sabendo que existem aqueles que implicam com a forma "pego". No entanto, nenhum dos dois oferece qualquer respaldo a essa implicância porque desmentida pelos fatos da norma culta atual.

Se formos consultar os gramáticos, veremos que Celso Cunha não inclui o verbo "pegar" entre os abundantes. Mas isso significa pouco porque, segundo informam os próprios gramáticos, estas listas nunca são exaustivas. Rocha Lima acrescenta à sua lista de abundantes a observação de que o particípio do verbo "pegar" no português clássico é "pegado". Como bom Pilatos, lava as mãos quanto à forma pego. Por fim, Evanildo Bechara, o melhor gramático brasileiro vivo, inclui o verbo "pegar" na sua lista de abundantes, atribuindo-lhe, portanto, dois particípios: pegado e pego.

Pacificada está, portanto, a questão da forma "pego". Os bons dicionários a registram, o melhor gramático brasileiro da atualidade a inclui entre os particípios de pegar, nosso maior escritor moderno a usou e, não bastassem todas estas razões, o Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, uma espécie de livro do tombo das palavras da língua, organizado, por força de lei, pela Academia Brasileira de Letras, lista "pego" como forma do verbo "pegar".

Podemos, agora, ampliar nossa análise dos verbos abundantes com algumas observações sobre os modos como as diferentes formas são usadas.

A maioria dos verbos do português tem uma só forma para o particípio. E, neste caso, predominam as formas regulares, terminadas em –ado (para verbos da primeira conjugação: amar/amado, comprar/comprado, visitar/visitado) e –ido (para os verbos da segunda e da terceira conjugações: vender/vendido, beber/bebido, partir/partido, sentir/sentido). Alguns poucos verbos têm uma forma irregular (dizer/dito, fazer/feito, ver/visto, vir/vindo, pôr/posto).

Os verbos abundantes, como mencionamos antes, são aqueles que têm esta peculiaridade: duas formas para o particípio – uma regular e outra irregular. Não são muitos os abundantes e, curiosamente, o uso tem dado diferentes destinos a esta abundância de formas. As seguintes situações são observadas:

1 – a forma irregular caiu em desuso. É o caso do verbo assentar, cuja forma irregular assente é de pouco ou nenhum uso no Brasil;

2 – a forma regular caiu em desuso. É o caso dos verbos ganhar, gastar, pagar. Lemos no Guia de uso do português (e também no Houaiss) que as formas "ganhado", "gastado" e "pagado" são de pouco uso;

3 – em alguns casos pode-se dizer que há uma espécie de especialização das formas: a forma regular ocorre mais frequentemente acompanhada dos verbos auxiliares "ter" ou "haver" e a forma irregular, dos verbos auxiliares ser ou estar. Assim é, por exemplo, com o verbo "matar": costumamos usar "matado" com o verbo "ter" (tinha matado) e "morto" com o verbo "ser" (foi morto). No entanto, não há aqui uma regra absoluta. Na maioria dos casos, usamos a forma regular ou irregular com qualquer dos auxiliares.

Os verbos abundantes não devem, portanto nos meter medo. Constituem, sem dúvida, um fenômeno curioso da língua. Mas não é o caso de perdermos o sono com eles. Basta saber que existem e que o uso que deles fazemos espontaneamente é o adequado na norma culta.

Carlos Alberto Faraco é Professor Titular (aposentado) de Lingüística e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná.

Fonte: CBN Curitiba

2 comentários:

Adri disse...

oi professor Carlos Alberto

Muito obrigada pelo seu tao elucidativo texto. Sou professora de Lingua Portuguesa na Inglaterra e me deparei com a palavra "limpado" como traducao para o ingles "wiped". Imediatamente resolvi pesquisar, pois tinha a impressao que o unico termo correto seria "limpo". Agora percebo que e somente uma questao de uso.

A proposito, me desculpe pela ausencia de acentuacao (nao tenho acentos no meu teclado ingles :( , o que torna a vida do leitor muito mais dificil)...

Novamente, obrigada.

Adriana

Marcia Moreira disse...

Oi, Adriana.
Na verdadade, a dona deste blogue não é o professor Carlos, mas sou eu, Marcia Moreira (ver meu perfil). Este é um texto que peguei do uol sobre língua portuguesa. Infelizmente, não peguei o link deste professro. Mas fique à vontade para visitar o meu blogue.